a chuva cai lá fora, você vai se molhar
seis e meia da manhã toca o despertador.
amado marido tem consulta na nutricionista às oito. pediu para eu botar o despertador para esse horário insano. botei.
tocou, acordei, acordei ele, levantei, fui no banheiro, dei papá pros gatos, preparei o suco e a vitamina c de amado marido, fui lá chamar ele de novo, limpei o banheiro dos gatos, comi uma coisinha, fui chamar ele de novo, troquei de roupa, escovei o dente e fui chamar ele de novo.
ele levanta, entra no banheiro, eu dou comida pro peixe e remédio pro gato.
ele resmunga, eu venho pro computador.
sete e meia, bora?
não, tá cedo, a gente chega lá em dez minutos.
dez minutos? e pq vc disse para eu botar o despertador para seis e meia?
ah, telinhah. pq eu achei que VOCÊ ia demorar a se arrumar.
chove. pouco, mas chove.
nós dois temos guarda-chuvas, mas só eu abro o meu.
ele vai na chuva. pára o táxi, a gente entra, ele dá o endereço.
"pq vc não usou o guarda-chuva, bebê?"
"pq eu sempre perco"
"mas aí vc se molha!"
"pois é"
engarrafamento. no rádio falam de um canal que transbordou e de carros assaltados por conta do trânsito parado. chegamos na médica. chove a cântaros. amado marido enfia o pé na enxurrada.
demoram a abrir a porta do prédio. a gente se molha ainda mais.
entramos.
oito e dez. oito e quinze. oito e vinte. a médica liga para avisar que tá presa no trânsito. amado marido levanta. eu faço ele sentar.
oito e trinta e cinco. a doutora chega. amado marido vai para a consulta. não me deixa entrar.
nove e meia. amado marido sai da consulta. a médica ri. disse que a consulta foi pela metade, ele precisa voltar depois. eu não entendo nada, ele diz que me explica mais tarde.
saímos, chove prá c* saltitantes.
andamos na chuva, dessa vez cada um com seu guarda-chuva. meu tênis tá velho, eu ando mais devagar para não escorregar por conta da sola lisinha.
paramos um táxi, entramos.
primeiro deixo ele no trabalho e depois sigo pro supermercado. este é o plano original.
meia hora parados no trânsito, o plano muda. assim que a gente chegar na rua tal, eu desço, pego outro táxi e vou pro supermercado. ele segue pro trabalho.
ligo para a tia de amado marido. perpétua trabalha lá e nas quartas vem para cá. peço para ela segurar perpétua em casa até eu chegar.
desço na rua tal e enfio o pé até o calcanhar na água suja da rua. não tem rua, tem rio. cada carro que passa é uma onda. eu xingo puuuuuuuuuuuuuuuuuuuta que pariiiiiiiiiiiiiiu bem alto. amado marido dá tchau do carro.
eu ando no meio da água suja. eu fico com medo de pegar lepistopirose. lepstopirose. aquela doença do xixi do rato. a febre bobônica. dengue. mau-olhado.
no caminho, eu vejo um supermercado. mudo o plano de novo, entro nele, os pés fazem splosh nos tênis enxarcados. eu sublimo. eu faço as compras. eu - rá! - compro sorvete.
um destino cruel me aguarda. são onze da manhã. lancho num quiosque da casa de pão de queijo.
vou para o ponto de táxi que tem no supermercado. nenhum táxi à vista. muitos clientes, com seus carrinhos de compra, conversam sobre o caos que está a cidade. o túnel rebouças fechou. isso já significa grandes problemas quando não tem chuva, imagina com o mundo se acabando do jeito que está.
meio dia. um povo conversa animadamente do meu lado. estão lá desde as nove e meia, quando o canal transbordou. um rapaz passa e diz que na rua do lado a água bate no joelho. pára um táxi. eu vou falar com o moço. peço gentilmente que ele passe um rádio para a cooperativa mandando táxis lá pro supermercado. o moço diz que não dá para andar na rua e que ele parou lá pq era o único lugar seco. disse que vai esperar a chuva parar e voltar para casa, que não é doido de dirigir com a água em cima da roda.
eu entro de novo no supermercado, deixo meu carrinho no atendimento ao cliente. compro uma toalha de rosto, uma meia, um tênis e um vidro de álcool. no caixa, tênis tá sem o preço. volto na seção, o tênis custa 50 paus. desisto do tênis e compro uma havaiana branca de 15 reau. compro tb a revista glossss para passar o tempo.
sento num banco e faço minha higiene pezal. tiro tênis e meias imundos, passo álcool no pé, esfrego com a toalha. com os pés secos, calço as meias e as havaianas, dobrando bem a barra da calça que está podre para não tocar nelas. basicamente, uma visão do inferno. e eu odeio havaianas, machucam meus pés. o troco do lanche na casa de pão de queijo cai do meu bolso, mas eu só vou notar quando chego em casa. seis reais é pouco, mas faz falta.
descubro, também, que meu pé cabe numa havaiana 33/34. eu jurava que meu pé era 35. enquanto meus pés diminuem, minha cintura aumenta, eis o mistério de nossa fé.
sento num banco, desconsolada. nada de táxi. o povo que conversava sumiu. capaz de ter ido para casa a pé.
uma da tarde. ligo desconsolada para amado marido. ele me passa o telefone de duas cooperativas. peço dois táxis, o que chegar primeiro ganha. "não podemos garantir quando nosso táxi vai chegar, senhora. pode demorar"
leio a revista. gente, é muito ruim. muito. muito mesmo. meu estado de ânimo também não ajuda. penso no sorvete virando suco.
me sinto uma órfã abandonada no meio da tempestade de neve. boto bico. quero minha casa, quero um banho, quero roupa limpa, quero minha mãe.
uma e meia da tarde. uma e quarenta e cinco. um senhor careca olha para mim e pergunta: "táxi?" e eu "sim, por favor!"
ele reclama do tempo. ele reclama do trânsito. ele mostra quatro, cinco táxis estacionados. pergunta dos motoristas. eu respondo que eu falei com todos, mas eles não querem pegar passageiro e nem pedir carro para o supermercado. eu devo estar com uma cara lastimável mesmo. deu vontade de beijar a careca do taxista.
o trânsito tá fluindo maravilhosamente, é claro: quem tem juízo não saiu de onde estava.chego em casa. não sei quanto foi a corrida: paguei vinte reau. deve ter sido oito.
entro em casa. duas da tarde. ligo para amado marido no trabalho. ele, inocente, havia deixado um recado na secretária eletrônica dizendo que chegou e que tá tudo bem. arrumo as compras. ligo para perpétua e digo para ela só vir amanhã.
ligo para fal e conto tudo isso. fal ri. se eu não amasse a fal, matava ela. eu xingo, eu choramingo, eu boto bico, eu acho minha vida o fim. fal manda eu tomar banho, literalmente. eu digo que vou tomar banho, passar álcool no corpo todo. e atear fogo.
bom, não ateei fogo. me deitei. me levantei. vim pro msn. almocei e, ops, esqueci de tomar meu remédio. tomo quando jantar, tomo dois comprimidos, paciência.
é isso. e amado marido detestou a nutricionista e não volta mais lá nem amarrado. e a metade que faltou da consulta foi ele se pesar e ser medido. ele não gostou dela. ele quer nutricionista homem.
é.