98 Telinha e seus gatinhos

no dia que eu me zangar
mato voce de carinho

Ze´ Limeira

15.12.06

Este é o presente que eu ganhei da minha falmiga secreta, a Vera! (que não tem blog, mas quem sabe, né? se anima e começa a escrever...)


O presente da Vera para a amiga Telinha

Querida Telinha, uma vez eu perguntei se você gostava de Natal. Nem rendi conversa, porque, se eu fosse falar no assunto, ia dizer que não gosto de Natal, que essa época do ano me incomoda, que, mesmo sendo eu uma pessoa com bastante controle das emoções, não consigo afastar a angústia difusa que em dezembro toma conta de mim. Já vi que não é nostalgia de um tempo que se foi, não é saudade das pessoas queridas que já partiram ou das que estão longe, não é nada disso. Acho que o clima excessivamente festivo e a obrigação de fazermos com que tudo fique bonito evidenciam minha preguiça, minha incompetência e minha incapacidade para essas coisas. Pior ainda, por que eu não consigo me desvencilhar desse clima e, por exemplo, me dedicar a algum projeto generoso que supostamente dê sentido ao Natal? Me descobrir uma farsa me angustia mais ainda.
Quando apareceu no Drops a idéia desse amigo-secreto, achei a proposta excelente, original e totalmente fora do clima de consumo e competição que costuma contaminar os amigos-secretos convencionais.
Ainda assim fiquei calada. Mais uma vez a Fal foi me buscar no meu canto, me desafiando a participar. Entrei no amigo-secreto aos 48 minutos do segundo tempo, não foi, Paula Clarice? Obrigada por me acolher. Obrigada a todos os coleguinhas que me acolheram e me
mandaram recados carinhosos. Foi (tem sido) precioso esse tempo que passamos juntos. Dificilmente terei outra oportunidade de ler tanta bobagem junta e rir tanto, todos os dias, a toda hora.
No sorteio, fiquei com a Telinha, que já conhecia principalmente pelos gatos. Trocamos bilhetinhos, estive na casa, ou melhor, no Quarto da Telinha, descobrimos afinidades e, a partir daqui, somos amigas. E pronto.
Desde então tenho me esforçado, Telinha, para participar do grupo da melhor maneira possível. Primeiro, tenho tentado vencer o gap tecnológico. Sou de uma geração em que ainda não se trabalhava no mundo virtual. Daí, o simples fato de ativar uma conta de grupo de yahoo é um parto para mim, dá dor no estômago, suor frio e vontade de sumir. Escrever e mandar bilhetinhos, fazer o para-casa de mandar o texto, então, só tem sido possível com a ajuda das anjinhas-da-guarda Flávia Rizzo, Maloca, Paula Clarice, Patsy...
Agora, o texto coisudo... O que uma pessoa que não compreende o Natal vai escrever? Contar da ceia feita com má-vontade, com um filé comprado pronto e dois pacotes de macarrão daqueles de envelope, quase miojos? Isso vai queimar demais o meu filme. Não, não vou contar isso. Contar do Natal em que eu estava com hóspedes, seis hóspedes, e o poço artesiano do condomínio desabou e ficamos sem água, e vieram os feriados, sumiram os caminhões-pipa, a cada dia a coisa piorava e mesmo assim fizemos uma ceia ótima e eu não perdi o humor? Aleluia!!! Dependendo do meu empenho, até poderia sair um relato engraçado, mas... ainda não. Pensei também usar um conto de natal de uma de minhas irmãs, escrito há mais de 50 anos. Não me recordo direito dele, mas a vaga lembrança que tenho me diz que ele se encaixa na proposta do nosso grupo. Liguei para a irmã outrora escritora, ainda não sei se vai conseguir localizá-lo.
Aí tive uma idéia que me agradou bastante. Acho que estamos chegando lá. A estrutura do escrito seria um diário, diário, não, um relato que começaria dois anos atrás, quando uma mulher brasileira, preta e pobre encontra um emprego de doméstica e consegue, finalmente, ter a
carteira profissional assinada e acha que a vida vai melhorar. O relato continuaria com os reveses por que ela passa - o processo que move contra o ex-marido que assediava a filha adolescente deles, o barraco que ameaçava desabar, uma gravidez (a sétima) inesperada, o
diabetes recentemente descoberto, a trajetória dos filhos homens deixando de ser adolescentes e virando adultos sem trabalho e sem escola, esses reveses culminando com a chegada de uma Intimação Demolitória do barraco dela, construído em área pública. Para encerrar, ela diria que neste ano não haverá ceia de Natal... Não, baixo-astral demais, minha amiga não merece isso, a turma do LV não merece, ninguém merece.
Continuei remexendo meu cérebro, meu coração e minhas memórias à procura do texto coisudo. E me lembrei, não de um texto, mas de um filme, ou melhor, do episódio de um filme que reunia várias histórias de Natal baseadas em contos de O'Henry, esse moço aqui.
O filme, a versão de 1952 que atiçou minhas lembranças, com Farley Granger e Jeanne Crain, é esse aqui.
Aí brilhou a certeza de que dificilmente eu iria encontrar algo mais de acordo com o que eu suponho seja o espírito do Natal.
Como um carinho adicional à amiga secreta, ainda pensei em tentar fazer eu mesma a tradução do conto, já que a autoria do texto não seria minha. Quando vi a tradução feita pelo José Paulo Paes, desisti, aí era covardia, não ousei.
Então, querida Telinha, desejando a você e aos que lhe são queridos o melhor, sempre, aí vão os dois textos, o original e a tradução.

THE GIFT OF THE MAGI
by O. Henry
One dollar and eighty-seven cents. That was all. And sixty cents of it was in pennies. Pennies saved one and two at a time by bulldozing the grocer and the vegetable man and the butcher until one's cheeks burned with the silent imputation of parsimony that such close dealing implied. Three times Della counted it. One dollar and eighty-seven cents. And the next day would be Christmas.
There was clearly nothing to do but flop down on the shabby little couch and howl. So Della did it. Which instigates the moral reflection that life is made up of sobs, sniffles, and smiles, with sniffles predominating.
While the mistress of the home is gradually subsiding from the first stage to the second, take a look at the home. A furnished flat at $8 per week. It did not exactly beggar description, but it certainly had that word on the lookout for the mendicancy squad.
In the vestibule below was a letter-box into which no letter would go, and an electric button from which no mortal finger could coax a ring. Also appertaining thereunto was a card bearing the name "Mr. James Dillingham Young."
The "Dillingham" had been flung to the breeze during a former period of prosperity when its possessor was being paid $30 per week. Now, when the income was shrunk to $20, though, they were thinking seriously of contracting to a modest and unassuming D. But whenever Mr. James Dillingham Young came home and reached his flat above he
was called "Jim" and greatly hugged by Mrs. James Dillingham Young, already introduced to you as Della. Which is all very good.
Della finished her cry and attended to her cheeks with the powder rag. She stood by the window and looked out dully at a gray cat walking a gray fence in a gray backyard. Tomorrow would be Christmas Day, and she had only $1.87 with which to buy Jim a present. She had been saving every penny she could for months, with this result.
Twenty dollars a week doesn't go far. Expenses had been greater than she had calculated. They always are. Only $1.87 to buy a present for Jim. Her Jim. Many a happy hour she had spent planning for something nice for him. Something fine and rare and sterling--something just a little bit near to being worthy of the honor of being owned by Jim.
There was a pier-glass between the windows of the room. Perhaps you have seen a pier-glass in an $8 flat. A very thin and very agile person may, by observing his reflection in a rapid sequence of longitudinal strips, obtain a fairly accurate conception of his looks. Della, being slender, had mastered the art.
Suddenly she whirled from the window and stood before the glass. Her eyes were shining brilliantly, but her face had lost its color within twenty seconds. Rapidly she pulled down her hair and let it fall to its full length.
Now, there were two possessions of the James Dillingham Youngs in which they both took a mighty pride. One was Jim's gold watch that had been his father's and his grandfather's. The other was Della's hair. Had the queen of Sheba lived in the flat across the airshaft, Della would have let her hair hang out the window some day to dry just to depreciate Her Majesty's jewels and gifts. Had King Solomon been the janitor, with all his treasures piled up in the basement, Jim would have pulled out his watch every time he passed, just to see him pluck at his beard from envy.
So now Della's beautiful hair fell about her rippling and shining like a cascade of brown waters. It reached below her knee and made itself almost a garment for her. And then she did it up again nervously and quickly. Once she faltered for a minute and stood still while a tear or two splashed on the worn red carpet.
On went her old brown jacket; on went her old brown hat. With a whirl of skirts and with the brilliant sparkle still in her eyes, she fluttered out the door and down the stairs to the street.
Where she stopped the sign read: "Mme. Sofronie. Hair Goods of All Kinds." One flight up Della ran, and collected herself, panting. Madame, large, too white, chilly, hardly looked the "Sofronie."
"Will you buy my hair?" asked Della.
"I buy hair," said Madame. "Take yer hat off and let's have a sight at the looks of it."
Down rippled the brown cascade.
"Twenty dollars," said Madame, lifting the mass with a practised hand.
"Give it to me quick," said Della.
Oh, and the next two hours tripped by on rosy wings. Forget the hashed metaphor. She was ransacking the stores for Jim's present.
She found it at last. It surely had been made for Jim and no one else. There was no other like it in any of the stores, and she had turned all of them inside out. It was a platinum fob chain simple and chaste in design, properly proclaiming its value by substance alone and not by meretricious ornamentation--as all good things should do. It was even worthy of The Watch. As soon as she saw it she knew that it must be Jim's. It was like him. Quietness and value- -the description applied to both. Twenty-one dollars they took from her for it, and she hurried home with the 87 cents. With that chain on his watch Jim might be properly anxious about the time in any company. Grand as the watch was, he sometimes looked at it on the sly on account of the old leather strap that he used in place of a chain.
When Della reached home her intoxication gave way a little to prudence and reason. She got out her curling irons and lighted the gas and went to work repairing the ravages made by generosity added to love. Which is always a tremendous task, dear friends--a mammoth task.
Within forty minutes her head was covered with tiny, close-lying curls that made her look wonderfully like a truant schoolboy. She looked at her reflection in the mirror long, carefully, and critically.
"If Jim doesn't kill me," she said to herself, "before he takes a second look at me, he'll say I look like a Coney Island chorus girl. But what could I do--oh! what could I do with a dollar and eighty-seven cents?"
At 7 o'clock the coffee was made and the frying-pan was on the back of the stove hot and ready to cook the chops.
Jim was never late. Della doubled the fob chain in her hand and sat on the corner of the table near the door that he always entered.
Then she heard his step on the stair away down on the first flight, and she turned white for just a moment. She had a habit for saying little silent prayer about the simplest everyday things, and now she whispered: "Please God, make him think I am still pretty."
The door opened and Jim stepped in and closed it. He looked thin and very serious. Poor fellow, he was only twenty-two--and to be burdened with a family! He needed a new overcoat and he was without gloves.
Jim stopped inside the door, as immovable as a setter at the scent of quail. His eyes were fixed upon Della, and there was an expression in them that she could not read, and it terrified her. It was not anger, nor surprise, nor disapproval, nor horror, nor any of the sentiments that she had been prepared for. He simply stared at
her fixedly with that peculiar expression on his face.
Della wriggled off the table and went for him.
"Jim, darling," she cried, "don't look at me that way. I had my hair cut off and sold because I couldn't have lived through Christmas without giving you a present. It'll grow out again--you won't mind, will you? I just had to do it. My hair grows awfully fast. Say `Merry Christmas!' Jim, and let's be happy. You don't know what a
nice-- what a beautiful, nice gift I've got for you."
"You've cut off your hair?" asked Jim, laboriously, as if he had not arrived at that patent fact yet even after the hardest mental labor.
"Cut it off and sold it," said Della. "Don't you like me just as well, anyhow? I'm me without my hair, ain't I?"
Jim looked about the room curiously.
"You say your hair is gone?" he said, with an air almost of idiocy. "You needn't look for it," said Della. "It's sold, I tell you--sold and gone, too. It's Christmas Eve, boy. Be good to me, for it went for you. Maybe the hairs of my head were numbered," she went on with sudden serious sweetness, "but nobody could ever count my love for you. Shall I put the chops on, Jim?"
Out of his trance Jim seemed quickly to wake. He enfolded his Della.
For ten seconds let us regard with discreet scrutiny some inconsequential object in the other direction. Eight dollars a week or a million a year--what is the difference? A mathematician or a wit would give you the wrong answer. The magi brought valuable gifts, but that was not among them. This dark assertion will be
illuminated later on.
Jim drew a package from his overcoat pocket and threw it upon the table.
"Don't make any mistake, Dell," he said, "about me. I don't think there's anything in the way of a haircut or a shave or a shampoo that could make me like my girl any less. But if you'll unwrap that package you may see why you had me going a while at first."
White fingers and nimble tore at the string and paper. And then an ecstatic scream of joy; and then, alas! a quick feminine change to hysterical tears and wails, necessitating the immediate employment of all the comforting powers of the lord of the flat.
For there lay The Combs--the set of combs, side and back, that Della had worshipped long in a Broadway window. Beautiful combs, pure tortoise shell, with jewelled rims--just the shade to wear in the beautiful vanished hair. They were expensive combs, she knew, and her heart had simply craved and yearned over them without the least
hope of possession. And now, they were hers, but the tresses that should have adorned the coveted adornments were gone.
But she hugged them to her bosom, and at length she was able to look up with dim eyes and a smile and say: "My hair grows so fast, Jim!" And them Della leaped up like a little singed cat and cried, "Oh, oh!"
Jim had not yet seen his beautiful present. She held it out to him eagerly upon her open palm. The dull precious metal seemed to flash with a reflection of her bright and ardent spirit.
"Isn't it a dandy, Jim? I hunted all over town to find it. You'll have to look at the time a hundred times a day now. Give me your watch. I want to see how it looks on it."
Instead of obeying, Jim tumbled down on the couch and put his hands under the back of his head and smiled.
"Dell," said he, "let's put our Christmas presents away and keep 'em a while. They're too nice to use just at present. I sold the watch to get the money to buy your combs. And now suppose you put the chops on."
The magi, as you know, were wise men--wonderfully wise men--who brought gifts to the Babe in the manger. They invented the art of giving Christmas presents. Being wise, their gifts were no doubt wise ones, possibly bearing the privilege of exchange in case of duplication. And here I have lamely related to you the uneventful chronicle of two foolish children in a flat who most unwisely sacrificed for each other the greatest treasures of their house. But in a last word to the wise of these days let it be said that of all who give gifts these two were the wisest. O all who give and receive gifts, such as they are wisest. Everywhere they are wisest. They are the magi.


O Presente dos Magos
O. Henry
Tradução de José Paulo Paes

Um dólar e oitenta e sete centavos. Era tudo. E sessenta centavos eram em moedas. Moedas economizadas uma a uma, pechinchando com o dono do armazém, o dono da quitanda, o açougueiro, até o rosto arder à muda acusação de parcimônia que tais pechinchas implicavam. Três vezes Della contou o dinheiro. Um dólar e oitenta e sete centavos. E no dia seguinte seria Natal.
Não havia evidentemente mais nada a fazer senão atirar-se ao pequeno sofá puído e chorar. Foi o que Della fez. O que leva à reflexão moral de que a vida é feita de soluços, fungadelas e sorrisos, com predomínio das fungadelas.
Enquanto a dona da casa gradualmente passa do primeiro ao segundo estágio, vamos dar uma espiada na casa. Um apartamento mobiliado, a oito dólares por semana. Não era exatamente miserável, mas tinha essa palavra pronta para o grupo de mendicância.
No vestíbulo embaixo havia uma caixa de correspondência na qual carta nenhuma seria posta, e um botão de campainha que nenhum dedo mortal jamais apertaria. Encontrava-se ali também um cartão anunciando o nome de "Mr. James Dillingham Young".
O "Dillingham" fora acrescentado durante um anterior período de prosperidade, quando seu possuidor estava ganhando trinta dólares por semana. Agora, que a receita baixara para vinte dólares, as letras de "Dillingham" pareciam nubladas, como se estivessem pensando seriamente em abreviar para um modesto e despretensioso D.
Mas sempre que Mr. James Dillingham Young voltava para casa e chegava ao seu apartamento lá em cima, era chamado de "Jim" e carinhosamente abraçado por Mrs. James Dillingham Young, já apresentada ao leitor como Della. O que está muito bem.
Della terminou de chorar e cuidou do rosto com a esponja de pó. Postou-se junto à janela e ficou a contemplar melancolicamente um gato cinzento caminhando sobre uma cerca cinzenta num quintal cinzento. Amanhã seria Dia de Natal e ela tinha apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar o presente de Jim. Estivera a
economizar tostão por tostão havia meses, e esse era o resultado. Vinte dólares por semana não dão para nada. As despesas tinham sido maiores do que calculara. Sempre são. Apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar o presente de Jim. O seu Jim. Muitas horas felizes passara ela planejando comprar-lhe alguma coisa
bonita. Alguma coisa fina, rara, legítima ? algo que estivesse bem perto de merecer a honra de ser possuída por Jim.
Havia um espelho de tremó entre as janelas da sala. Talvez o leitor já tenha visto um espelho de tremó num apartamento de oito dólares. Uma pessoa muito esguia e muito ágil pode, com observar seu reflexo numa rápida seqüência de tiras longitudinais, obter uma concepção bastante acurada de sua aparência. Della, por ser esguia, lograra
aperfeiçoar-se nessa arte.
Subitamente, afastou-se da janela e postou-se diante do espelho.
Seus olhos estavam brilhantes, mas sua face perdeu a cor ao cabo de vinte segundos. Num gesto rápido, soltou o cabelo e o deixou desdobrar-se em toda a sua extensão.
Ora, os James Dillingham Youngs tinham dois haveres de que muito se orgulhavam. Um era o relógio de ouro de Jim, que pertencera a seu pai e a seu avô. O outro era o cabelo de Della. Morara a Rainha de Sabá no apartamento do outro lado do poço de ventilação, e Della teria algum dia deixado o seu cabelo cair fora da janela para secá-lo e depreciar assim as jóias e as riquezas de Sua Majestade. Fora o Rei Salomão o zelador, com todos os seus tesouros empilhados no porão, e Jim teria puxado o relógio cada vez que por ele passasse, só para vê-lo arrancar as barbas de inveja.
O cabelo de Della, pois, caiu-lhe pelas costas, ondulando e brilhando como uma cascata de águas castanhas. Chegava-lhe abaixo do joelho e quase lhe servia de manto. Ela então o prendeu de novo, célere e nervosamente. A certo momento, deteve-se e permaneceu imóvel, enquanto uma ou duas lágrimas caíam sobre o puído tapete
vermelho.
Vestiu o velho casaco marrom; pôs o velho chapéu marrom. Com um ruge-ruge de saias e com a centelha brilhante ainda nos olhos, correu para a porta e desceu rapidamente a escada que levava à rua.
Parou onde havia um letreiro anunciando: "Mme. Sofronie, Artigos de Toda Espécie para Cabelos". Della subiu a correr um lance de escada e se deteve no alto, arquejante, para recompor-se. Madame, corpulenta, alva demais, fria, dificilmente faria jus ao nome de "Sofronie".
? Quer comprar meu cabelo? ? perguntou Della.
? Eu compro cabelo ? disse Madame. ? Tire o chapéu e vamos dar uma olhada no seu.
Despenhou-se, ondulante, a cascata de águas castanhas.
? Vinte dólares ? ofereceu Madame, erguendo a massa com mão prática.
? Dê-me o dinheiro depressa ? pediu Della.
Oh, as duas horas seguintes voaram com asas róseas. Perdoe-se a metáfora gasta. Della se pôs a vasculhar as lojas à procura de um presente para Jim.
Encontrou-o por fim. Fora certamente feito para ele e para ninguém mais. Nada havia que se lhe parecesse nas outras lojas, e ela as revirara de alto a baixo. Era uma corrente de platina, curta, simples e de modelo discreto, proclamando adequadamente seu valor por sua mesma substância e não por qualquer ornamentação espúria ?
como o devem fazer todas as coisas boas. Era digna até do Relógio.
Tão logo a viu, soube que tinha de ser de Jim. Era como ele.
Serenidade e valor ? a descrição se aplicava a ambos. Vinte e um dólares cobraram-lhe por ela, e Della correu para casa com os oitenta e sete centavos. Com aquela corrente no relógio, Jim poderia preocupar-se decentemente com o tempo na frente de qualquer pessoa. Grande como era o relógio, ele às vezes o consultava meio
envergonhado devido à velha tira de couro que usava em lugar de corrente.
Quando Della chegou a casa, seu embevecimento cedeu lugar a um pouco de prudência e razão. Pegou os ferros de frisar, acendeu o gás e pôs-se a reparar os estragos causados pela generosidade acrescida ao amor. O que sempre é uma tarefa muito árdua, queridos amigos ? uma tarefa gigantesca.
Ao cabo de quarenta minutos, sua cabeça estava coberta de pequenos caracóis cerrados, que a faziam parecer, admiravelmente, um menino vadio. Contemplou sua imagem no espelho durante longo tempo, crítica e cuidadosamente.
? Se Jim não me matar ? disse consigo mesma ? antes de olhar-me pela segunda vez, dirá que pareço uma corista de Coney Island. Mas que podia eu fazer... oh, que podia eu fazer com um dólar e oitenta e sete centavos? Às sete horas, o café estava preparado e uma frigideira quente no fogão esperava o momento de fritar as
costeletas.
Jim nunca se atrasava. Della dobrou a corrente no côncavo da mão e sentou-se a um canto da mesa, perto da porta pela qual ele sempre entrava. Ouviu então seus passos no primeiro lance da escada e empalideceu por um instante. Ela tinha o hábito de rezar pequenas preces silenciosas a propósito das mínimas coisas diárias, e agora
murmurava:
? Oh, Deus, fazei-o, por favor, achar-me ainda bonita!
A porta se abriu, Jim entrou e a fechou. Parecia magro e muito sério. Pobre sujeito, apenas vinte e dois anos e já responsável por uma família! Precisava de um sobretudo novo e não tinha luvas.
Jim avançou alguns passos, tão rígido quanto um perdigueiro na pista de uma codorniz. Seus olhos estavam fitos em Dela e havia neles uma expressão que ela não conseguia ler e que a aterrorizava. Não era raiva, nem surpresa, nem desaprovação, nem horror; não era nenhum dos sentimentos para os quais ela estava preparada. Ele simplesmente a fitava com aquela peculiar expressão na face.
Della esgueirou-se para fora da mesa e se encaminhou para ele.
? Jim, querido ? gritou ?, não me olhe desse jeito! Mandei cortar o cabelo e o vendi porque não poderia passar o Natal sem dar um presente a você. Ele crescerá de novo... não se aborreça, por favor. Eu tinha de fazer isso. Meu cabelo cresce terrivelmente depressa. Diga "Feliz Natal!", Jim, e fiquemos felizes. Você não sabe que coisa bonita, que belo presente tenho para você.
? Mandou cortar o cabelo? ? perguntou Jim a custo, como se não se tivesse ainda compenetrado desse fato patente após o mais árduo esforço mental.
? Cortei-o e vendi-o ? disse Della. ? Você não continua a gostar de mim do mesmo jeito, então? Estou sem cabelo, não estou?
Jim olhou à volta do aposento de modo curioso.
? Você diz que seu cabelo se foi? ? insistiu, com um ar de quase idiotia.
? Não precisa procurar por ele ? disse Della. ? Foi vendido, como lhe disse... vendido, não está mais aqui. É Véspera de Natal, querido. Seja bonzinho comigo, fiz isso por sua causa. Talvez fosse possível contar os cabelos da minha cabeça ? continuou ela, com súbita e grave doçura ?, mas ninguém poderá jamais avaliar o meu
amor por você. Posso fritar as costeletas, Jim?
Emergindo do seu transe, Jim pareceu despertar rapidamente. Abraçou a sua Della. Por dez segundos, contemplemos, com discreta atenção, qualquer objeto inconseqüente, noutra direção. Oito dólares por semana ou um milhão por ano ? qual a diferença? Um matemático ou uma pessoa arguta daria a resposta errônea. Os magos trouxeram presentes valiosos, mas isso não estava entre eles. Esta asserção obscura será
esclarecida mais tarde.
Jim tirou um pacote do bolso do sobretudo e atirou-o sobre a mesa.
? Não me interprete mal, Della ? disse. ? Não acho que haja alguma coisa, corte de cabelo, raspagem ou xampu, capaz de fazer-me gostar menos da minha mulherinha. Mas se você abrir esse pacote, poderá ver por que fiquei abafado no princípio.
Alvos dedos ligeiros desfizeram o atilho e o embrulho. Ouviu-se então um grito estático de alegria, e depois, ai!, uma súbita mudança feminina para as lágrimas e os gemidos, que exigiram o imediato emprego de todos os poderes de consolação do senhor do apartamento.
Pois sobre a mesa jaziam Os Pentes ? o jogo de pentes para cabelos que Della adorara havia muito numa vitrine da Broadway. Belos pentes, de tartaruga legítima, orlados de pedraria ? da cor exata para combinar com o lindo cabelo desvanecido. Eram pentes caros, ela o sabia, e seu coração se limitara a desejá-los e a suspirar por
eles sem a menor esperança de vir um dia a possuí-los. E agora pertenciam-lhe, mas as tranças que os anelados enfeites deveriam adornar não mais existiam.
Ela, porém, os apertou contra o peito e, por fim, pôde erguer os
olhos nublados, sorrir e dizer:
? Meu cabelo cresce tão depressa, Jim!
E então Della pulou como um gatinho chamuscado e gritou:
? Oh! oh!
Jim ainda não vira o seu belo presente. Ela lho estendeu ansiosamente na palma da mão aberta. O fosco metal precioso parecia brilhar com o reflexo do seu jubiloso e ardente espírito.
? Não é uma beleza, Jim? Vasculhei a cidade toda para achá-lo. Doravante, você terá de ver as horas uma centena de vezes por dia. Dê-me o seu relógio. Quero ver como fica nele.
Em lugar de obedecer, Jim deixou-se cair no sofá, pôs as mãos atrás da cabeça, e sorriu:
? Della ? disse ?, vamos pôr os nossos presentes de Natal de lado e deixá-los por algum tempo. São lindos demais para poderem ser usados agora. Vendi o relógio para conseguir o dinheiro com que comprei os seus pentes. Que tal se você fritasse as costeletas agora?
Os magos, como sabem, eram homens sábios ? homens maravilhosamente sábios ? que trouxeram presentes para a Criança na manjedoura. Inventaram a arte de dar presentes natalinos. Sendo eles sábios, seus presentes eram sem dúvida igualmente sábios. Possivelmente admitiam o privilégio de troca em caso de duplicação. E aqui lhes
contei canhestramente a desimportante crônica de duas crianças tolas, num apartamento, as quais da maneira a mais insensata, sacrificaram, uma pela outra, os maiores tesouros de seu lar. Mas como derradeira palavra para os sensatos dos dias que correm, seja dito que, de todos que dão presentes, os dois foram os mais sábios.
Todos que dêem e recebam presentes como os deles são os mais sábios.
Em toda parte, os mais sábios. São os magos.


Vera, querida, ao ler seu texto tão lindo, tão coisudo, tão emocionante, vi que tirei a sorte grande neste falmigo secreto. Obrigada, querida, por lembrar a verdadeira natureza dos presentes de natal

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

querida telinha, mas eu sou mesmo uma pessoa sem noção. foram falar em texto coisudo e eu devo ter achado que era texto comprriiiiido, que vergonha! ele ficou enoooooorrrmmeee!!!
normalmente eu sou uma pessoa concisa, muito objetiva. mas nesse dezembro acho que virei um ser falador, como voce observou.
obrigada, querida, pelas palavras doces!
beijos

11:52 AM

 
Blogger stella said...

Querida, seu texto é coisudo, enorme, lindo, carinhoso, emocionante! Me permita dizer: preferi a sua parte, contando os percalços. Quem disse que ser coisuda é fácil, hein?

:)

6:15 PM

 

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