98 Telinha e seus gatinhos

no dia que eu me zangar
mato voce de carinho

Ze´ Limeira

7.9.04

amanhã vó maria faria cem anos.
ela morreu há algum tempo. há pouco tempo, quase nada: cinco anos, se muito.
era uma avó desse tamainho. sempre vestia cores sóbrias. um azulzinho, um cinza... cabelo num coque fininho, uma trança rala e branquinha que era comprida a vida toda. sorria pouco, mais para mim, que vivia falando besteira para ela sorrir. sempre impecável, a roupa limpíssima, o cabelo arrumado, sempre perfumada. vovó não era peguenta, não era carinhosa demais. se preocupava como iam meus estudos, minha saúde e se eu almoçava na hora certa.
conversava muito lúcida, a vista fraquinha. gostava da cadeira de balanço e da oração de são francisco. os meus presentes para ela geralmente eram santos. os presentes dela para mim geralmente eram perfumes do boticário, que ela ganhava de presente e repassava.
vovó morreu deixando muitos tecidos no guarda-roupa. eram cortes que iriam ser saias, blusas, vestidos. um dia. tem pano lá há mais de dez anos esperando para virar roupa.
um dia deu cupim e as fotos antigas viraram poeira. eu era muito nova para entender o que isso significava, e até hoje eu tenho pena pelo que se perdeu - incluindo, misteriosamente, uma caixa de cartões postais que meu tio-avô, marinheiro da marinha mercante, mandava para ela dos quatro cantos do mundo. e eu nunca vi esses postais.
vovó rezava mais de hora, toda noite. rezava e andava, andava e rezava, no escuro pela casa, lá pelas dez horas. pedia por todos da família, com nome e sobrenome. até por quem não merecia. por quem nem lembrava que ela existia. por filhos de tias distantes: ela dizia que pelos santos se beija os altares. ela gostava de fulana, pedia pelos filhos de fulana.
eu lembro de vovó tratando galinha para o almoço de domingo, lidando com uma faca quase tão velha quanto ela, faca que, de tão usada, tinha a lâmina deformada - vovó a chamava de "faca magra". e todos tinham os seus copos. não se bebe no copo do outro, minha filha.
ela era miudinha. eu de joelho era capaz de ser mais alta do que ela, vejam que não é vantagem nenhuma a minha altura.
vovó pintou, por um tempo. com tinta de tecido em telas de pintura. caminhos com casinhas, vegetação, barcos no mar. quadros simples, mas cheios de vida, cheios de nuances. cada árvore era de um tom de verde com seu tipo de folha.
vovó bordava na velha singer preta de pedal.
vovó usava brinco de pérola. ela tinha um brinco antigo que eu queria pedir de presente e nunca tive coragem: uma rosa de ouro velho, um dourado escurecido. um dia, no banho, o brinco desceu pelo ralo. não sei que fim levou o par.
vovó me mandava dormir cedo. tinha as mãos trêmulas. cochilava assistindo a tv, mas nunca admitiu. vovó era mandona, era tinhosa. não quis festa aos noventa anos e a gente acabou descobrindo que era porque não queria que soubessem que ela estava fazendo noventa anos. vaidosa, dona maria minha vó.
eu morro de saudade dela. e queria ter conhecido muito mais sobre ela, e ter passado mais tempo e ter deixado vovó mais feliz.
mas não tenho remorso. amei, amei e amei. queria ter amado mais. mas a saudade é doce. feliz aniversário, vó.