Comunhão
Walcyr Carrasco
Quantos pequenos gestos ficaram gravados na minha vida! Há muito tempo fui a uma festa à fantasia. Uma senhora italiana portava uma coroa de ramos de arruda. Simpaticamente me deu um pedacinho. Pus atrás da orelha. Saí para a rua com uma sensação de felicidade. O gesto preenchera meu espírito. Nunca mais a vi. Anos depois ela lançou um livro de culinária. Entre outras lembranças, falava da festa e dos ramos de arruda. Recordei seu astral, sua gentileza. Soube que já faleceu. Ficou um sentimento de carinho por alguém que, realmente, nunca conheci. Da mesma forma, nunca vou esquecer o sorriso de uma boliviana no mercado de La Paz. Eu era jovem, muito jovem. Viajava como mochileiro. Perguntei o preço de uma maçã. Ela disse e eu me afastei. A fruta era cara para meus parcos recursos. A velha me chamou de volta. Mandou pegar uma.
– Não tenho dinheiro – respondi.
Ela me ofereceu, brincalhona:
– Tonto! Toma, tonto!
Seu rosto largo e moreno de índia ficou impresso na minha memória. Às vezes, quando estou magoado, eu me lembro daquela maçã. Sinto a esperança renovada. Outra vez, eu viajava com uma amiga na região do Rio São Francisco. Estavam construindo uma barragem, que ia cobrir uma cidadezinha. Nem me lembro do nome. Pegamos um ônibus e fomos à festa de despedida do local. Havia música, gente chorando, mudanças de última hora. E um casal de noivos. Saíram da igreja e fomos atrás. Entramos em uma sala, somente com algumas cadeiras ao longo da parede. O casal sentado e tristíssimo. Parecia velório. Nem um biscoito, nem bolo. Éramos penetras, mas especiais, por sermos paulistas e estarmos participando do último dia do lugar. O noivo pegou a garrafa de uma bebida doce e popular, com dois copos, e nos ofereceu. Brindamos. Nós nos despedimos, desejando felicidades. Recordo com precisão dos noivos acanhados, do drinque. Às vezes penso naquelas casas, hoje debaixo das águas, com peixes passeando entre as paredes. E nos dois. Terão filhos? Vivem por lá, ainda?
Também existe a contrapartida. Encontrei um amigo de meu primo, conhecido da adolescência. Cumprimentou-me com alegria. Eu não lembrava, mas naquela época fôramos acampar. Ele me viu lendo Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Espantou-se.
– Como tem paciência para um livro tão grande?
Garante que respondi:
– Imagine quantos sonhos, quantas coisas o autor teve de viver para colocar nestas páginas.
Desde então se interessou pelos livros. A conversa, da qual nem sequer me lembrava, marcou sua vida.
Uma vez assisti, no Teatro Sérgio Cardoso, a uma apresentação de um balé folclórico de algum distante país oriental, ainda comunista. Na saída, os artistas tentavam comprar pipoca. Não tinham o suficiente. Senti vontade de oferecê-la, mas não me movi. Foram embora decepcionados. Em certos momentos, eu me pergunto:
– Por que não tive aquela pequena atitude de generosidade?
Existem amizades, relações que duram a vida toda. Fazem parte da minha história, com altos e baixos, começos e fins. Mas todos os dias cruzo com pessoas que provavelmente nunca mais verei. São cenas que giram na mente, como um caleidoscópio. Com o poder de despertar emoções. Aprendi a dar importância ao sorriso para a caixa do supermercado. À conversa, mesmo banal, com um desconhecido na sala de espera do aeroporto. A qualquer momento, eu posso estar ouvindo uma palavra significativa. Ou fazendo um gesto que vai contar para alguém. Em todos os encontros, sempre pode existir uma surpreendente comunhão.
da veja sp desta semana.
1 Comments:
Lindo texto, faz nos refletir que precisamos de aproveitar para vir a somar em comunhão com o próximo, crescendo dia a dia como pessoa.
10:55 PM
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