eu li isto no blog do marcelo e tou com um nó na garganta.
Tende piedade de nós
José Paulo Cavalcanti Filho
“Catarina Maranhão Ehrich. Estou muito doente. Fiz 73 anos e você não apareceu com meu neto. Continuo sozinho, morrendo de solidão e depressão profunda. Tenha piedade do seu pai. Antonio Carlos Ehrich”. Anúncio publicado no JC (pág. 14) de domingo passado. Lembrando verso de Sophia de Mello Breyner Andressen: “Reconheci-te logo destruída/ Sem te poder olhar porque tu eras/ O próprio coração da minha vida/ E eu esperei-te em todas as esperas”.
Busco razões para que alguém abra a alma assim. Revelando tragédias íntimas a quem não conhece. Como se o silêncio doesse mais que o ressentimento. Como se a indiferença da família e dos amigos já não incomodasse. Como se o peso de estar só fosse grande demais para suportar sozinho.
Penso no amigo Lenine Nequete. Foi íntimo de meu pai, embora nunca se tenham visto. Escreveu livro, meu pai fez observações, se falavam sempre. Uma tarde ligou. Disse haver escrito, não houve resposta com a presteza das outras vezes. Respondi que a indesejada das gentes viera. Ele chorou ao telefone, por tempo demais. Revelando, naquele choro, a dimensão de sua dor. Então desligou. Sem dizer palavra. Nem era preciso. De todas as homenagens prestadas ao velho, talvez nenhuma tenha me tocado tanto.
Agora, com Antonio Carlos, aconteceu coisa parecida. Procurei no catálogo seu telefone e liguei. Disse apenas ter lido o anúncio. Ele chorou oceanos. Quase não conseguiu conversar. Pensando bem, uma conversa assim não teria mesmo sentido. Importante era que pedia socorro. E que alguém ouviu sua voz.
Não conheço os personagens. Para mim, serão sempre só dois nomes. Sem rostos. Personagens que entram em nossas vidas sem pedir licença. E que logo voltarão ao vazio de onde há pouco escaparam. Deles restando apenas lembranças fugazes que o tempo apagará, um pouco a cada dia, até que sem sentir nos abandonarão para sempre.
Em verdade pai, filha e todos nós somos vítimas do mesmo mal. O do não se importar com os outros. Em uma sociedade cada vez mais consumista, vamos impressentidamente perdendo valores, esperanças e ilusões. As famílias jantam sempre com pressa. Em vez de ficar em volta da mesa proseando, as pessoas agora se sentam em silêncio, ombro a ombro, de frente para a televisão. Sem mais se olhar no rosto. Mudas. Ou estão nos computadores, em busca de amigos distantes que nunca verão, em lugar dos que já não conseguem fazer nas vizinhanças de suas casas.
Estamos perdendo o costume de conversar nas calçadas. Perdem-se na memória os médicos da família. Ou padres que nos visitavam. Esquecemos aniversários daqueles de quem gostamos. Estão se acabando os almoços de domingo. Os vidros dos carros, sempre fechados pelo medo de assaltos, já não nos permitem sentir os sons e os cheiros da cidade. Estamos construindo, tijolo por tijolo, o desenho lógico de uma civilização da solidão.
Esse anúncio não é só prova do desespero de Antônio Carlos em busca de Catarina. É, antes, um convite à convivência mais fraterna. Mais solidária. Mais generosa. Onde as pessoas contêm. Quando um pai se dirige a uma filha encarecendo piedade, é como se todos os homens, e todas as mulheres, se dirigissem a outros homens e mulheres, iguais a eles. Pedindo, uns aos outros, e do mais fundo coração, que tenham piedade de nós.
josé paulo cavalcanti filho é advogado.
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