98 Telinha e seus gatinhos

no dia que eu me zangar
mato voce de carinho

Ze´ Limeira

20.12.02

cinqüenta anos em doze de dezembro.


era 1952 quando meus pais se casaram.

eu vi a foto, tirada alguns dias depois da cerimônia: mamãe linda, embora não tão virginal em seu vestido de noiva, meu pai magro, dentuço, orelhudo. diz que tirar foto depois era normal na época. sei que até hoje acho isso estranho. (uma vez, menininha ainda, perguntei quem era aquele homem feio na foto com ela. quando eu nasci meu pai era gordo, os dentes já não eram tão salientes e as orelhas pareciam menores. e era muito mais bonito, claro.)

minha mãe era uma menina quando casou. 23 anos, meu pai com 25. no ano seguinte, o primeiro aniversário de casamento era comemorado com minha irmã mais velha no colo.

doze de dezembro era dia de festa dupla: também era o dia de arrumar a árvore de natal. dia de algum presentinho envergonhado entre eles. meus pais nasceram no fim dos anos 20, o que é um absurdo de se pensar: ele em 27, ela em 29. tinham grande carinho um pelo outro, mas nunca se beijaram na boca na frente das filhas.

muitos doze de dezembro chegaram com dificuldades. a vida de repórter era dura e deliciosa para o meu pai, dura e preocupante para minha mãe. pouco dinheiro e horários estranhos: plantões, viagens, essas coisas. e, vindo mais uma filha, meu pai resolveu largar das redações (o lugar onde ele era mais feliz no mundo, uma vez me disse. "eu tenho tinta de impressão nas veias, minha filha") e dar mais conforto à família, palavras dele também. foi ser professor de história e português na escola de pesca de tamandaré. minha mãe era secretária do diretor da escola (nas palavras dela, um cavalo batizado que brigava até com a sombra, mas que nunca se meteu a besta com ela). teve um ano que não teve salário. um ano inteiro, com duas filhas para criar, nenhum dinheiro no bolso. foi gente para brasília conseguir a liberação da verba da escola. acho que no dia que esse dinheiro chegou teve festa.

teve festa também no dia em que a televisão chegou. a casa dos meus pais era a única que tinha a novidade, e todos os televizinhos iam lá para ver a novela. nesse tempo eu não era nascida. era o meio dos anos 60. da casa dava para ver o mar. do quarto dos meus pais dava para ver o mar. eles eram moços, tinham duas filhas saudáveis e um mundo de amigos. a vida era boa. mas o dinheiro era curto, podia melhorar.

e meu pai foi fazer direito. metade porque ele quis, metade porque minha mãe empurrou. pegar ônibus e horas de estrada para a faculdade em caruaru. durante quantos anos mesmo? quando ele se formou, minha irmã mais velha era mocinha de 15 anos. o doutor e sua família se mudaram da praia para o sertão.

ouricuri, terra quente dos diabos, até o vento é morno. passei uns dias lá, voltei espantada do povo sobreviver naquele ambiente. pois doutor geraldo, dona helena e as meninas foram muito felizes por lá. passaram uns anos, mudaram para uma cidade de clima mais ameno, e eu nasci, em 1970, espantando tudo e todos, pois minha mãe tinha 41, meu pai tinha 43, minha irmã mais velha ia fazer 17, minha irmã mais nova tinha 11. por um erro de cálculo, não nasci geraldo filho, mas com o nome das duas avós até que me considero uma pessoa de sorte.

então passamos mais uns anos entre as cidades do agreste pernambucano até que chegou a hora das minhas irmãs fazerem faculdade. juntamos as malas e cuias e fomos todos para recife.

meu pai fez 50 anos. eu tinha sete. e festa de aniversário, no meu ponto de vista, tinha que ter bolo, bola e brigadeiro. e meu pai teve festa de criança no aniversário dele.

chegamos aos anos 80, minhas irmãs casaram e nós nos mudamos de novo, para o interior, para surubim. e ficamos por lá até 86, quando meu pai se aposentou e voltamos para recife.

em 87 meu pai fez 60 anos. já tinha um neto e três netas. fez festa dentro de casa, minha mãe fez um peixe que até hoje está na história da família. e no bolo de aniversário estava escrito "60 anos de sombra e água fresca", que meu pai explicava como sendo "os próximos".

que não vieram. em fevereiro de 88 ele teve um derrame que o deixou em coma até morrer, num quinze de novembro. o ano fiz questão de esquecer...

os doze de dezembro continuaram chegando e indo embora, agora sendo um dia agridoce, mas a tradição da árvore continuava.

este ano seriam cinqüenta anos. os netos já são grandes, as filhas são adultas, a família está espalhada pelo país.
liguei para minha mãe no dia doze de dezembro. doente, ela não sabia que era "aquele" dia. eu também não disse nada.

fica uma sensação de que o que havia sido combinado era bem diferente. que nas bodas de ouro meu pai estaria vivo, que ambos teriam saúde, que a festa ia ser bonita e que todo mundo ia estar junto e feliz.

se passou mais um doze de dezembro, mas este ano a árvore não foi montada.

e seriam cinqüenta anos este ano.