Ueda-san, uma parte do velho Japão
Amy Chavez
Em nossa ilha, a passagem do tempo é medida em vidas. Com o falecimento da minha vizinha Ueda-san (senhora Ueda), eu sinto que uma parte do Japão partiu com ela.
Ueda-san gostava de ficar sentada na varanda de sua casa, de manhãzinha, descascando os camarões de uma grade cesta que o peixeiro trazia direto da pescaria noturna. Eu passava correndo por ela, em meus saltos altos, apressada para pegar o ferry boat, gritando por sobre meu ombro "por favor, Ueda-san, tome conta do meu gato enquanto eu estiver fora".
Parecia que ela estaria sempre tomando conta do meu gato enquanto eu estava sempre saindo apressada. Mas desta vez, não fui eu quem foi embora.
A geração de Ueda-san representa o antigo Japão, um tempo onde todos estavam ocupados com suas casas. Com 78 anos de idade, ela ainda cuidava da sua horta e utilizava suas próprias receitas de fertilizantes para tratar a terra. Ela trabalhou nesta horta todas as manhãs e de tarde trazia cestos de legumes e vegetais para casa.
Semana passada eu visitei Ueda-san no hospital, trazendo flores silvestres como uma lembrança das flores de sua casa. Ela estava deitada, cercada por um mundo Hello Kitty: havia travesseiros, cobertores e mantas com essa imagem.
No ocidente, nós trazemos padres e pastores quando alguém está perto de morrer. No Japão, eles trazem a Hello Kitty.
Alguns dias depois a nora de Ueda-san (que garantia jamais ter tido um desentendimento sequer com a sogra) precisou telefonar para a família e amigos. Quando ela ligou para mim, eu estava fora da ilha, trabalhando. "Ela morreu às 4:08 da manhã", era a mensagem de Kazuko.
Eu cheguei em casa às 12:40. O povo da ilha, ocupado em seus afazeres domésticos, já havia terminado as primeiras orações antes do funeral. Eu fui levada a um quarto que estava maravilhosamente ornamentado em branco e preto, com imensos ramalhetes de flores enviados pela família e amigos. Ueda-san estava deitada em um futon no chão, com seu rosto coberto com um quadrado de tecido branco.(futon é um colchão japonês, semelhante a um colchonete)
As senhoras idosas da ilha estavam sentadas no tatami perto de Ueda-san, conversando como se ela não estivesse ali, sem demonstravar emoção. Elas estavam simplesmente cumprindo um ritual que era feito há anos, o ato de se despedir de seus amigos da maneira apropriada.
Eu, que não estou acostumada com a morte, tive medo de olhar o rosto de Ueda-san. Mas, quando eles descobriram seu rosto, ela estava tão bonita e serena... As pessoas me ajudaram a acender um incenso, e, com a ajuda de hashis (os pauzinhos japoneses que servem como talheres) colocá-lo no oratório sobre sua cabeça e, usando uma folha, derramar sobre este oratório um pouco de água.
O funeral seria no próximo dia, um domingo. Mas aquele dia, segundo o calendário chinês, era "tomobiki." Uma coisa que é iniciada num dia tomobiki traz, segundo a tradição, uma série de eventos naquela direção. Se houvesse um funeral no dia tomobiki, alguém poderia ser colocado no caminho da morte, havendo outro funeral em seguida. Então, o funeral foi transferido para a segunda feira, e eu não poderia ir devido ao meu trabalho. Aquela segunda feira eu iria aplicar as provas finais nos alunos da universidade, embora eu ansiasse por ficar em casa.
No domingo seguinte, eu fui para a cerimônia das preces de sétimo dia. As mesmas senhoras de idade que estiveram no velório estavam presente, reunidas em torno de uma foto de Ueda-san.
Nós entoamos sutras (orações sagradas budistas) e as senhoras nos serviram chá e docinhos a todos os presentes. Ao partir, cada um recebeu uma sacolinha com açúcar, óleo de cozinha e lenços, num agradecimento aos envelopes de dinheiro que havíamos trazido, cada um com uma quantia entre 5.000 a 100.000 yen (entre 38 e 769 dólares).
Agora que Ueda-san partiu, não haverá ninguém ocupado em sua casa. Eu terei que me lembrar sozinha de pegar a roupa lavada quando chover, e eu vou ter que fazer meu próprio composto fertilizante. As minhas plantas vão morrer sem o seu toque mágico (ela se lembrava de regá-las) e minha casa poderá desaparecer, pois ninguém irá observá-la quando eu sair. E meu gato? Bem, meu gato vai estar ocupado ficando em casa.
Eu posso ouvir o velho telefone de Ueda-san tocando na casa ao lado. Não há ninguém em casa para atendê-lo. E ele fica tocando e tocando, por uma parte do Japão que foi embora.
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