Mensagem de Marighella ao ministro ‘Mateus’
Elio Gaspari - O Globo, 23/01/02
Repassa-se aqui o teor de uma mensagem recebida de carlosmarighella@aln.org endereçada ao ministro Aloysio Nunes Ferreira.
“Camarada Mateus:
Vi ontem a tua entrevista com a Ana Paula Padrão. Você estava tratando do assassinato do prefeito Celso Daniel e disse o seguinte:
‘É preciso uma reação coordenada. Em outros momentos, eu me lembro, no tempo do regime militar, os serviços de repressão puderam desmantelar o PCB, o PC do B, a ALN, a VPR, o MR-8 (...) Será que não podem dar conta desses criminosos que hoje fazem seqüestros relâmpago e esse tipo de ação?’
Fiquei triste, Mateus. (Se você quiser, chamo de ministro Aloysio, mas como tenho doces lembranças do tempo em que você era o Mateus, prefiro assim.) Você sabe que os serviços de repressão da ditadura militar não desmantelaram coisa nenhuma porque reagiram coordenadamente. Desmantelaram a nossa Ação Libertadora Nacional e todas as siglas que você citou porque, coordenadamente, torturaram e assassinaram nossos companheiros. Mataram pessoas em sessões de tortura para obter confissões, e mataram também para intimidar os sobreviventes. Em novembro de 1969, não foi a coordenação do trabalho do delegado Sérgio Fleury com o Cenimar que lhes permitiu a emboscada da Alameda Casa Branca, na qual morri. Foram as torturas impostas aos nossos companheiros presos dias antes.
Mateus, como você me fala em ‘reação coordenada’? Eles sabiam que a VPR estava planejando um seqüestro de diplomata que morava em Santa Teresa e foram incapazes de raciocinar. Lá moravam três embaixadores, o argelino (que estava do nosso lado), o núncio (que ninguém é bobo de seqüestrar) e o alemão. Deixaram rolar e a VPR seqüestrou o embaixador alemão poucas semanas depois.
***Lembras do Virgílio Gomes da Silva? É o Jonas do assalto ao trem pagador da Santos-Jundiaí, em agosto de 1968. (Vocês expropriaram o equivalente a US$ 21 mil dólares.) Ele não foi preso porque a Operação Bandeirante tornou-se a semente da ‘reação coordenada’. Foi preso porque torturaram nossos companheiros e, preso, foi assassinado. Quando o Virgílio foi assassinado, você já estava em Paris.
***Lembras do Arno Preiss? Também expropriou o trem pagador. Foi para Cuba e voltou ao Brasil. Mataram-no numa emboscada em Goiás, em 1972. Ele estava naquela turma que voltou para o Brasil, inteiramente vendida. Terrível história essa. Aqui onde eu estou sabe-se de tudo, mas não se pode contar.
***Mateus, se eles te pegassem, te matavam. Não fariam isso porque estavam reagindo coordenadamente. Você morreria porque, a partir de 1971, um sujeito com a tua qualificação levava uma bala na cabeça. O PCB não foi desmantelado porque houve reação coordenada. Desmantelou-se porque era uma casa-da-mãe-joana (eu bem que avisei) mas sobretudo porque parte de seus líderes foi deliberadamente exterminada.
Existem épocas em que as pessoas estão pouco se lixando para a vida dos outros. Você sabia que um dos torturadores do Vladimir Herzog morreu exatamente como ele, ‘suicidado’ numa delegacia policial? Ninguém reclamou.
Outro dia um camarada nosso, que ajudou a expropriar o cofre do Adhemar de Barros (faturaram US$ 2,5 milhões) deu a seguinte resposta quando lhe contaram que o assassino de sua secretária morrera ‘enforcado’ numa cela: ‘Eu quero que eles se lixem’.
Lugar de bandido é na cadeia, e espero que todos os seqüestradores passem o resto de suas vidas trancados. Tive uma discussão terrível com o Che Guevara porque ele defendeu a ida do senador Eduardo Suplicy ao Carandiru para visitar aqueles seqüestradores canadenses que aprisionaram o Abílio Diniz.
Não deixe que a repulsa pela morte do Celso Daniel se transforme num processo histérico. Baixe o chanfalho no crime. Lembre-se sempre de que ‘a ação faz a vanguarda’. Se hoje a polícia brasileira é o que é, isso se deve em parte à deterioração de seus processos investigativos. Eles foram substituídos pela rotina do Esquadrão da Morte e pelos métodos do delegado Sérgio Fleury. Vá à ação, Mateus. Seja a vanguarda das pessoas que pensam como você, mas não diga aos telespectadores da Ana Paula que ‘os serviços de repressão puderam desmantelar’ nossa organização por conta de uma ‘reação coordenada’. Você sabe que isso não é verdade.”
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