98 Telinha e seus gatinhos

no dia que eu me zangar
mato voce de carinho

Ze´ Limeira

17.1.02

Aprendendo a fazer pão
Nina Horta

Mulheres e trabalho caseiro dão uma boa série para começo de ano. Quem é essa baixinha, vestida de branco? O que é, o que é, esse fiapo de gente de cabelo vermelho, arretada, difícil, fechada? O que é, o que é, reclusa, apaixonada, monja, pagã, noiva sem noivo, homem ou mulher, o que é?
Dizem que é a maior poeta americana, alguns a comparam a Shakespeare na consistência das palavras. O que tinha na cabeça para se esconder uma existência inteira na casa dos pais, esconder seus quase 2.000 poemas, nunca publicados em vida, guardados em saquinhos de pano?
Não aprendeu o recato do lar na escola. A diretora tinha fogo nas ventas e afirmava que um dos grandes perigos para o cérebro das mulheres era a cozinha. Concentravam toda a atenção nessa área do conhecimento e não lhes sobrava tempo para cultivar a mente. O que as donas-de-casa tinham que fazer era simplificar a lida e aproveitar a vida (com leituras edificantes). E que se danassem os maridos, esses tiranos, diante dos quais as mulheres se curvavam em servidão sem esperança. (Opa, isso em 1850!)
Mas a poeta só achava da vida o que queria achar, depois de muito pensar. Tratou de transformar a religião da família e do colégio numa coisa só sua, estudou bastante, apaixonou-se pelos livros e depois, já que podia escolher, escolheu voltar para casa, para a fortaleza paterna, de onde começaria uma imensa viagem para dentro de si mesma.
Lutou sempre para reconciliar seus dons de imaginação com o papel de mulher, com a realidade doméstica, sem deixar que o fogão, a agulha e a vassoura a fizessem menor. Completou a grandeza de seu projeto poético lavando louça na pia.
"Viver é um êxtase, o mero sentir a vida é alegria bastante."
É um lugar-comum comparar a casa a um cadinho de alquimia, mas os lugares-comuns existem para serem repetidos à exaustão. A transformação das matérias, a fibra se fazendo fio, o fio tecido, as aranhas trabalhando em círculos de luz, o fim e o começo, circunferências, tarefa interminável. O barro, bilha e vaso, o bulbo, flor.
Os detalhes mais comezinhos se transformavam em metáforas, palavras unidas ou separadas por traços inconfundíveis e escritas em papeluchos guardados no bolso, em meio à faina.
Não era preciso atravessar a rua, largar a horta, a estufa ou o jardim para saber o Vesúvio, Veneza, Vera Cruz, Vevay. "Fechar os olhos é viajar. Gosto de viajar, mas minha casa tem encantos só dela."
Andando de cá para lá, mãos ativas, cabeça no mundo da lua. As coisas do dia-a-dia tinham um halo sagrado. Rosa-abelha-borboleta, pássaros-morcegos, bolos-sopas, bordados-costuras, uma religião de domesticidade (feroz). Na verdade, não adorava o trabalho todo da casa e, imagino, muita empregada ao redor. Sanguessuga, tensa, erótica, gostava mesmo era de juntar palavras, retratar a vida e a morte, bordar em sangue, chorar por dentro, trepanar o mundo, destampar a cabeça para ver o cérebro. Mas, já que tinha que escolher um serviço mais afável, que fosse a cozinha ou o jardim.
Adorava escrever cartas, nos dias de hoje seria uma internauta viciada e empedernida. Aos 14 anos, conta a uma amiga: "...Hoje vou aprender a fazer pão".
Daí em diante, tornou-se a padeira da casa, o pai não comia outro pão que não o dela. Num lance incongruente de sua biografia de mito, ganhou um concurso de bolos na feira de gado de sua cidade. O prêmio era de 75 cents, mas ganhou e continuou a fazer o pão ou bolo vida afora. "As pessoas querem doces, então é preciso fazê-los." Quatro xícaras de farinha de centeio - 1/2 xícara de manteiga - 1/2 xícara de creme - uma colher de sopa de gengibre - uma colher de chá de soda - uma colher de chá de sal. Confeitar com melado.
E sempre batendo a massa, com a cabeça rodando, tentando transformar o indizível em articulado, rabiscando, rabiscando.
Flashes do dia-a-dia furando e machucando os olhos. A irmã com a vassoura na mão - o avental sujo - o vestido que havia que ser branco impoluto - o balde as flores no vaso - é hora de fazer o jantar - costuro o mais depressa que posso para ter tempo de te amar - está na hora do chá - viver é tão emocionante que não sobra tempo para mais nada - os pêsames a carta - os pequenos desejos de mamãe, ler para ela, abaná-la, prometer que sua saúde vai voltar amanhã.
Paisagem que a alma triturou, descascou, escalpelou, rachou, soldou em versos.
(Emily Dickinson. Amherst, Nova Inglaterra, 1830-1886)

Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, hoje.