Recife.
Meu reencontro com Recife foi como uma reunião de amigos de escola. Enquanto olhávamos para trás, foram muitas as emoções, as risadas, os reconhecimentos. então ainda existe a padaria capela? existe e prospera. ainda existe a tia dondon, doceria mágica da minha infância? existe, mas não faz mais a torta saint-honoré que era a favorita de papai. o prédio onde morei até os 9 anos, ed. los angeles, rua amélia, n. 5, continua com sua fachada laranja e branca. o meu colégio virou um prédio de apartamentos. meu curso de inglês virou uma lan house. a melhor loja de presentes virou loja de lingerie. o centro da cidade, tão degradado da última vez que eu fui lá, melhorou bastante, mas a sete de setembro está muito ruim. e, no meu antigo trabalho, salas vazias, portas com grades e só 3 pessoas "do meu tempo". dez anos é tempo demais para uma empresa - mas o cheiro da sala de jornalismo, do corredor do estúdio B, ah, o cheiro me levou de volta ao meu tempo de estágio. tanto, tanto tempo se passou.
depois desse reconhecimento saudoso, dos causos contados, quando eu e recife olhamos para o presente, nos desconhecemos. fiz caminhos que eram rotina e, não, não parecia que o tempo não havia passado: o tempo passou e isso era claro, não dolorosamente claro, mas claro de incandiar. eu não era a mesma, recife não era o mesmo.
mas mesmo assim, meu povo, minha gente, meus parentes, meu sotaque.
sotaque que voltou tão forte, tão intenso, tão cheio de expressões que até estranhei a minha própria voz.
o grande reencontro não foi em recife, foi em surubim. passei poucas horas lá, mas ao entrar na rua da minha casa, ao ver seu muro branco, seus novos portões, me subiu uma coisa, um choro, me vi presa de grande emoção, me segurei como quem segura um touro na unha. eu sabia que não era o momento do choro. momento que chegaria mais tarde, sim, e chegou.
em surubim, na casa dos meus amigos, dos pais de meus amigos, casa onde entrei quase todos os dias entre 82 e 86, botando a cara no basculhante e gritando "abre aqui, por favor!". casa onde ia buscar minha amiga para irmos à escola. casa onde dancei quadrilhas, ouvi discos, estudei, brinquei, briguei. casa que me deu uma nova avó. casa que me deu sobrinhos-tortos. casa de minhas irmãmigas, casa onde sou quase filha.
voltando para recife, ainda não falei de minha família. a sobrinha linda, excelente motorista. a irmã sobrecarregada de trabalho, cuidadosa, atenta, responsável até doer, guerreira, forte e frágil. minha mãe velhinha, cabelos brancos, andando mal, me chamando de pelanquinho, me fazendo voltar no tempo, querendo a todo custo que eu penteasse o cabelo. minha tia, irmã dela, que agora mora lá. uma velhinha muito independente, que me surpreende fazendo aulas de dança de salão e repete a ladainha das eternas dores de estômago. a casa de papéis e livros e fotos. muitas fotos. muitas crianças filhas de amigos em fotos preto-e-branco. fotos de meu pai, minha mãe, meus avós. papai com bigode. papai sem bigode. papai num júri. papai quando era jornalista. mamãe tão magrinha, em foto dedicada "a meu querido noivo Lalo, sua noiva Lena".
amigos e mais amigos. a amiga da família que me conhece desde os meus 3 anos. a minha turma. a tia que tem meu nome. a prima que tem meu nome. as notícias de primos e seus filhos. muita gente que morreu. muita gente que nasceu.
no domingo à tarde, fui à igreja das graças. meu pai foi coroinha lá, nos anos 40. e é lá que repousam seus ossos, junto de seus irmãos e minha avó. eu fui lá, sozinha. a igreja estava fechada, cheguei cedo. conversei com um senhor que foi pura doçura e atenção com minha vontade tão delicada: ver o ossário onde está meu pai, rezar por ele. esperei. esperei. esperei. mas o sacristão chegou, abriu as portas. e eu pude ficar frente a frente com o nome do meu pai.
então chorei. chorei de soluçar, de não morder o nó do dedo. chorei de saudade. chorei de reencontro. cantei, chorando, para ele, as músicas que ele gostava. cantei trocando estrofes, errando as letras. deixei lá uma lembrança minha, uma bonequinha pequena de madeira com o escudo do nosso time de futebol. eu estive aqui, pai, olha, lembra de mim. me ajuda, me protege, me orienta. chorei a injustiça de viver sem ele. chorei pela tia velhinha que morreu sem que eu pudesse ir me despedir dela. chorei pela avó que não conheci, pela tia que não conheci, pelo tio que eu amei quando era menininha.
chorei de cansar. sentei num banco, chorei, cantei, não queria saber se me ouviam. se me julgavam. eu estava falando com meu pai.
eu sei e vocês sabem. ele - ele - não estava lá. são apenas seus ossos, seu resto. mas é meu pai. e mesmo com ele vivendo em mim a minha vida toda, era diferente.
chorei, serenei, fui para casa.
falei para mamãe. eu sei que ela queria que eu fosse com ela, para que ela também prestasse suas homenagens. mas se ela estivesse do meu lado, eu me preocuparia em protegê-la. eu ia cuidar dela. e eu não ia chorar, para ela não ver e não ficar triste.
melhor assim.
teve o batizado da julinha, e o reencontro com amigos de tanto tempo. a amiga que se distanciou, o amigo que agora tem filhas adolescentes. chamo a menina de lado e digo "conheço teu pai desde o século passado, quando ainda existiam dinossauros e não tinha cd, dvd, microondas, celular nem internet" meu amigo reclama "não entrega a minha idade!" e eu respondo "teus cabelos brancos já entregam, não tem mais jeito!"
julinha está linda, grande, serena no batizado. o padre tá feliz da vida por batizar um bebê tão novinho, ela tem um mês e meio. meus compadres estão lindos, orgulhosos, emocionados. julinha só chora no final, de calor, cansaço e fome. eu tiro fotos com ela e nem percebo que, devido à claridade da igrejinha, nem tirei os óculos escuros. saio de madrinha superstar, olha só.
o padre pede que todos que amam a neném para se aproximarem e fazerem o sinal-da-cruz em sua testa. pego mamãe e ela a abençõa. e isso para mim vale o mundo: minha afilhada, minha mãe e minha amiga de tantos anos.
de tarde saio com gil e expe e passeamos de catamarã. lindo passeio! as pontes de recife, as histórias que não conheço, a constatação de todas as ilhas que fazem minha cidade, menina dos olhos de mar. saber que recife é formado por ilhas é uma coisa. ver que são ilhas fluviais, ah, isso é outros quinhentos.
ver o barrigão da susana, ver neto como marido e quase pai, ver adinha cuidando da irmã. isso é tão lindo, e pensar que tudo isso começou em 82. que, juntos, somos a mesma turma onde as meninas ouviam menudo e os meninos não ouviam.
vou para o aeroporto de madrugada, minha irmã e minha sobrinha me levam. e, de repente, como uma visão, tão desconexos desse lugar, um frade franciscano, uma irmã clarissa. meu primeiro pensamento é que são atores. depois eu vejo quem eles são. olho de longe, uma vontade cresce no meu peito. e, na frente de uma loja, me aproximo, converso um pouco, peço ao frade que me abençõe. ele pergunta meu nome, para onde vou, o que faço em recife. fala baixo e devagar. e me abençoa, a mão leve e quente em minha testa. nesse momento, de olhos fechados, abro um sorriso. depois que sou abençoada, emocionada, agradeço e peço que maria santíssima os abençõe e acompanhe.
o tempo passa, chega minha hora, embarco. durmo quase toda a viagem, não como nada no avião. trago tanta coisa que pareço uma retirante. e, de repente, o rio de janeiro vai chegando. e, quando o avião pousa, eu sorrio: estou novamente em casa.
14 Comments:
Telitcha, miemocionei com este post todinho; deu até nó na garganta...
Tão bom 'rever' o passado assim!
Gde beijo!
3:24 PM
chega meu coração ficou apertado.
3:47 PM
Wow, Telinha, wow... É preciso ter coragem para fazer uma viagem dessas, que vai além da geografia, além das milhas voadas. Uma viagem para longe e ao mesmo tempo tão interna, tão perto e tão sensível. Tocante, emocionante, cada trecho, cada passo, cada lembrança e cada saudade. Um grande abraço cheio de carinho, querida.
4:00 PM
Chorei até perder o fôlego.
Vc é tão especial, tão maravilhosamente linda que me espanta. Meu amor por você só faz crescer.
Te amo amo amo amo amo
5:02 PM
Que coisa linda, Tela. E que bom que você voltou :)
5:29 PM
Telinha, linda viagem... engraçado como visitar lugares em que vivemos por tantos anos desencadeiam tantas emoções!
Todas as vezes que vou pro interior sou arrebatada por este sentimento de viagem no tempo. Todas as vezes...
5:29 PM
Fia, quem segurou as lágrimas agora fui eu. Que coisa linda! E não sei pq me surpreendi, vc é assim mesmo!
10:40 PM
Bia, obrigada. Pois é, foi um encontro emocionante :)
Ô, Briza, vem cá, dá um abraço, desaperta o coração...
Marcinha, abraço recebido e retribuído. E não é nem questão de coragem, sabe? Quando a emoção vem, não tem jeito.
Helga, Helga, num chora, você é o Sorriso de Maria, lembra?
Ale, que bom :)
Ila, é isso mesmo. É uma viagem no tempo. Beijo.
Gil, comadre, obrigada. E obrigada pelo passeio tão lindo :)
11:39 AM
lindo post. lindo lindo lindo
eu nao consegui segurar as lagrima,s chorei de me acabar.
e voce descreveu com perfeicao o que eu sinto quando vou ao rio, os caminhos tao familiares nao sao mais tao familiares assim. a sua cidade ja nao eh a mesma, que nem voce ja nao eh. tudo eh ao mesmo tempo estranho e familiar...
2:10 AM
Telinha, minha linda...
voce nao pode me fazer chorar assim de tanta emocao.
Lindas emocoes e contagiantes.
Beijos
8:11 PM
Ah, Tela... :_)
11:18 PM
é, cecilia, o reencontro deixa as mudanças - da cidade e nossas - tão claras...
hetie, não chora, coração, não chora.
ah, San! :)
7:39 PM
Acompanho seu outro blog (blog do meu pai) via feed há algum tempo e preciso dizer: me emociono de chegar a chorar com as coisas que leio lá.
Agora há pouco, adivinha! Chorei lendo o post mais recente, que é parte deste aqui.
Apesar da dor e da tristeza que devem ter te feito criar o blog, adoro ler o que escreve, pela sinceridade tamanha que faz doer em mim uma perda que não é minha.
Agora que conheci os outros dois endereços, vou assinar o feed para acompanhá-los também.
Beijos
6:29 AM
Querida Mila,
Obrigada por suas palavras tão carinhosas. Olha, existe uma grande tristeza, mas ela é parte de uma coisa muito maior. É saudade, é amor, é tristeza, é dor, é uma vida inteira, é a vida que poderia ter sido e não foi, é um monte de coisa que eu não sei dizer direito o que é. Só sei que é forte e verdadeiro, e escapa pelos dedos quando eu escrevo. Quanto à minha dor, o fato de você dividi-la comigo me comove imensamente; te peço, divida minha alegria também.
Um abraço apertado,
Stella
7:34 PM
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