98 Telinha e seus gatinhos

no dia que eu me zangar
mato voce de carinho

Ze´ Limeira

23.2.02

Um imperador da cultura popular
Mauro Ventura - O Globo, hoje


Não convidem Ariano Vilar Suassuna e um computador para a mesma mesa. Eles vão se estranhar. Em uma aula-espetáculo, o escritor disse: “Não sou eu que não gosto de computador, é ele que não gosta de mim!”

Suassuna exemplificou contando que uma amiga escreveu seu nome na tela. “Ele se recusou e sugeriu que ela trocasse meu sobrenome Vilar por vilão e Suassuna por assassino. Dessa forma, meu nome ficaria Ariano Vilão Assassino! Estão vendo só? É ele que não gosta de mim, me xingar desse jeito!”. O bem-humorado episódio, narrado pela professora Maria Aparecida Nogueira, ilustra um pouco da personalidade do imortal paraibano. Grande contador de causos, avesso aos modernismos, defensor intransigente da criatividade popular, crítico ferrenho do lixo cultural estrangeiro, Ariano Suassuna está na moda. Foi enredo do Império Serrano, tem dois espetáculos em cartaz no Rio e batiza um espaço cultural na Lapa. Em 2000, o filme “O auto da Compadecida”, dirigido por Guel Arraes e baseado em sua peça mais famosa, superou os dois milhões de espectadores, após bem-sucedida carreira na TV.

Homenageado no carnaval deste ano, o dramaturgo motivou o enredo “Aclamação e coroação do imperador da Pedra do Reino: Ariano Suassuna”. O Império Serrano acabou em nono lugar, mas o samba era o melhor da safra 2002, com trechos como “é muito mais que uma paixão/sou imperador lá do sertão”.

Ariano tem mostrado que é imperador também no sul maravilha. Sua boa acolhida no Rio vem de longe. Em 1957, a peça “O auto da Compadecida” estreou no Recife. Foi um fracasso. Na primeira sessão, havia metade do público. Na segunda, metade da metade. Na terceira sessão não tinha ninguém simplesmente porque o espetáculo foi cancelado. Poucos meses depois, a peça veio para o Rio, num festival no Teatro Dulcina. Foi uma comoção.

— É a maior comédia brasileira — acredita o diretor Guel Arraes.

Se há algo de que Suassuna não abre mão é de suas convições. Aos 74 anos, mantém uma coerência que se expressa em frases como “a globalização é o nome novo do velho colonialismo”.

— Suassuna entende o mundo a partir da cultura nordestina — observa Guel.

Profundamente nacionalista, o escritor recusou indicações aos prêmios Shell e Sharp, devido ao patrocínio de multinacionais. Da mesma forma, não quis participar da Bienal Nestlé de Literatura. Jamais saiu do Brasil. “Só saio deste país se o governo me botar pra fora”, disse certa vez. O escritor prefere continuar por aqui, pelejando contra as injustiças e cavalgando pelo sertão.

Brasil com ‘s’ de Suassuna
Barbara Heliodora

Não há qualquer grande mistério no fato de praticamente qualquer texto de Ariano Suassuna “funcionar” no palco: por mais urbano e globalizado que qualquer um de nós seja (ou esteja), há um âmago de brasilidade que nos faz reconhecer como parte de nós mesmos os seus personagens e os tropeços que lhes acontecem. Ora, para uma encenação passar para o público é preciso, de início, que todos os envolvidos nela saibam do que estão falando, o que torna o inverno finlandês sempre muito mais difícil de criar a indispensável impressão de “verdade” do que o verão tropical, por exemplo; e no momento essa singela constatação é comprovada por dois dos mais simpáticos espetáculos em cartaz no Rio, ambos formados por conjuntos de três pequenos episódios interligados, escritos por Ariano Suassuna.

Suassuna é um caso raro, é claro. É muito difícil encontrar um autor tão erudito que se identifique tão totalmente com o popular: o uso de “auto” como definição do gênero de suas obras dramáticas já revela por si a influência determinante da dramaturgia medieval nas mesmas, que poderiam ficar inexpressivas e tediosas se não fosse por dois dados cruciais, a total intimidade e identificação do autor com todas as formas da cultura popular do seu Nordeste, e a verdade candente de sua fé religiosa e do que esta implica em termos de comportamento. Os dois grupos jovens que no momento encenam textos de Suassuna no Rio procuram realizar, em cena, essa feliz duplicidade da natureza de sua obra: ambos procuram a autenticidade do popular trabalhado com instrumental “erudito”, isto é, por meio do uso consciente das técnicas e das linguagens cênicas capazes de levar seus textos ao público.

Erudito e popular em textos gostosos

“O auto do novilho furtado” é composto por três pequenas peças — “A inconveniência de ter coragem”, “O caso do novilho furtado” e o “Auto da virtude da esperança”. A primeira e a última já existiam há algum tempo (“A pena e a lei”), a do meio o autor escreveu para criar uma seqüência no ciclo de vida e morte dos mesmos personagens, sendo forçoso reconhecer que falta a essa segunda algo da força e do brilho das outras duas (como costuma acontecer com toda obra de encomenda...). Nas complicadas e divertidas aventuras nas quais, de alguma forma, o bem e o mal estão sempre em confrontação, para o espetáculo da Companhia Pop de Teatro Clássico, em cartaz no Teatro Leblon, o diretor Demétrio Nicolau optou por recorrer a alguns recursos da commedia dell’arte no que esta tem do aproveitamento de tipos, mas trabalhou também muito o caráter brasileiro dos personagens. A cenografia e os figurinos de Coca Serpa, como a luz e a trilha do diretor, dão o apoio certo ao grupo: em um elenco de cinco atores (uma mulher e quatro homens), não só cada um faz vários papéis como também, quando necessário, o papel passa de um para outro, sendo fundamental o fato de todos saberem do que estão falando, ou seja, reconhecerem-se na galeria que apresentam.

Os textos de Suassuna são gostosos (creio que o último é o meu preferido, mas o primeiro também é ótimo), e a encenação é simples mas imaginativa: tudo se resolve com facilidade, tudo convida a platéia a se solidarizar com o que vê. E Mouhamed Harfouch, Thales Coutinho, Geraldo Demezio, Assayo Horisawa e Fabiano Xavier funcionam como uma equipe que está ali para contar sua brasileiríssima história.

Na Rua do Lavradio, no Rio Scenarium, “A farsa da boa preguiça” é outra festa onde a erudição contribui para o bom aproveitamento do popular. Com ótimos figurinos e cenografia de Colmar Diniz, iluminação de Jorginho de Carvalho e excepcionais adereços e objetos de Carlos Alberto Nunes, a doutoranda da UNI-Rio Elza de Andrade faz ampla demonstração de que está no caminho certo na pesquisa que realiza para sua tese sobre a construção do personagem na comédia brasileira. Este espetáculo é também composto por três pequenos episódios da luta entre o bem e o mal, desta vez com o atuante patrocínio de Jesus, São Pedro e São Miguel de um lado, e três empenhadíssimos demônios do outro. O elenco aqui tem sete elementos (Ângela Blazo, Flavia Reis, Fernando Escrich, Alexandre Barros, Flavio Souza, Sálvio Moll e Renato Farias) que, como no “Auto do novilho”, fazem vários papéis. E, como já sabemos desde “O auto da Compadecida”, Suassuna tem a incrível capacidade de criar debates éticos fundamentais com aparente ingenuidade e muito riso. A diretora de “A farsa da boa preguiça” constrói um espetáculo ágil e divertido respeitando a tradição popular mas com uma elaboração técnica considerável.

Novamente, nesta farsa, o bom resultado nasce do espírito de equipe de um grupo jovem que compreendeu o que está fazendo e tem imenso prazer em dar prazer à platéia.

Tanto o “Novilho” quanto a “Preguiça” são gratificantes.


Para saborear o mestre dos autos


O AUTO DO NOVILHO FURTADO

ONDE ASSISTIR: Sala Marília Pêra do Teatro do Leblon (Rua Conde de Bernadotte 26, Leblon). Quarta-feira às 21h, quinta e sexta-feira às 18h30m. 90 minutos. Ingressos a R$ 15. Três pequenas peças — “A inconveniência de ter coragem”, “O caso do novilho furtado” e o “Auto da virtude da esperança” — compõem o espetáculo dirigido por Demétrio Nicolau.

A FARSA DA BOA PREGUIÇA

ONDE ASSISTIR: Rio Scenarium (Rua do Lavradio 20, 2 piso, Centro). De sexta-feira a domingo, às 19h30m. Ingressos a R$ 10. Dirigida por Elza Andrade, conta a história de dois casais: o rico Aderaldo Catacão e sua esposa, Clarabela, e o poeta popular Joaquim Simão e sua esposa, Nevinha, todos em conflito diante das tentações provocadas por três diabos e das tentativas de redenção propostas por três santos.